(Esta crônica do
participante Rui Werneck ganhou o primeiro lugar no VII Concurso Ruben Braga da
Academia Cachoeirense de Letras, Para o escritor receber o prêmio, obrigam-no a
ir a Cachoeiro do Itapemirim, mas o dinheiro respectivo não cobre a passagem até
ao Espírito Santo e este não o levará até ao escritor.)
MULHER
AO LIVRO
D’après
mestre Rubem Braga
De minha varanda não vejo, entre
edifícios altos e telhados, o mar. O dia está ensolarado e convidativo, mas o
mar mora longe, em outra cidade. Vejo só a rua cheia de carros, ônibus, motos, caminhões
— passam rapidamente, dobram esquinas, buzinam, freiam, aceleram, atropelam-se.
Não sossegam. O som dos motores vem de longe, cresce e decresce — são ondas sonoras
cíclicas, pesadas, que estremecem o ar, entram pelos ouvidos e embaralham o
espírito.
Porém, percebo um ponto calmo — uma
mulher acomodada na poltrona, em seu apartamento, no outro lado da rua. Não a
conheço — mas quem conhece ao menos o vizinho no mesmo edifício? Ela tem um
livro nas mãos e enfrenta a leitura com um distanciamento seguro da zoeira dos veículos.
A janela está fechada e o ambiente tem boa iluminação natural. Não sei se
escuta música — da qual certamente está alheia. A leitura faz com que ela se
ausente do mundo real. Transportou-a para algum reino perdido no tempo, alguma
cidade distante e para enredos de amor, aventura e magia. Nem percebe que a
observo. Com energia dos músculos contida — vira as páginas com leves
movimentos do braço e dos dedos — ela exercita apenas a imaginação. Não quer
acordar da viagem tão delicada e sacudir os personagens, truncando a história.
Por algum tempo, eu também me isolo da balbúrdia da rua e acompanho aquela
abnegada leitora — sonho de todos os escritores.
Somente durante a minha observação, ela
virou dez páginas. Seria um recorde? Digo isso sem malícia. Apenas comparo com
a pressa desmesurada dos leitores mais jovens — para eles, uma página é um mar
de provações e um livro, oceano eternamente tormentoso. A mulher parece ter
todo tempo do mundo — livrou-se das tarefas do dia e sentou para ler um livro.
Absorvida pela leitura, ela sabe que a vida lá fora pode esperar. Tem controle
do momento e das futuras movimentações — filho chegando da escola, marido
chegando do trabalho. Quem sabe o quê? Não importa. Importa é que ela conseguiu
conquistar um tempo precioso, só dela, para ler um livro. E ela, por sua
entrega, dentro do meu sincero julgamento, faz por merecer.
Daqui da varanda observo e, sem que ela
jamais venha a saber, uso a importante conquista para meu proveito — escrevendo
— e para proveito de alguma outra alma leve que venha a alcançar a sabedoria de
não se render ao infernal barulho das ondas sonoras da superfície — e prefira a
calma das profundezas do espírito.
Ela segue bravamente em frente. Lutando
silenciosamente contra a maré das coisas mundanas à sua volta. Talvez se
levante daqui a pouco, por obra de um telefonema, uma visita ou outra
importunação qualquer. Torço por ela no seu silêncio — que não venha a ser
quebrado por nada. Até que ela, por si mesma, desperte — sem pressões — do
sonho bom. Volto a mim e às máquinas que correm desvairadas — o mundo delas é
sempre noutro lugar! Deixo a visão da mulher lendo como um quadro que não cairá
nunca da parede da memória — mesmo sob os escombros de um barulhento mundo de motores.
Rui
Werneck de Capistrano
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