sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Périplo poético


Por que atravessar o país do norte ao nordeste, ou melhor, de Cruzeiro do Sul, no Acre, até Fortaleza, no Ceará? Para quem não sabe, esta é a maior linha de ônibus contínua de todo o país, com extensão aproximada de 7.800 km, talvez a maior da América do Sul. As razões para tal não se situam apenas no campo dos serviços de transporte público; provavelmente o grande peso na manutenção desse importante trajeto rodoviário tem razões históricas, relacionadas aos acontecimentos econômicos mundiais que repercutiram na política nacional, nas migrações internas, assim como no processo geopolítico, pois em 1903, findo o conflito entre Brasil e Bolívia, esta perde uma importante porção territorial, que veio a constituir-se no atual Estado do Acre, local onde havia abundância de árvores produtoras do látex.
As migrações populacionais que levaram os nordestinos brasileiros a se espalharem por todo o país têm uma importante página escrita na formação territorial, social e econômica da Amazônia, no período de intensa produção de látex na região. Vieram cerca de cem mil pessoas, tendo sido o Estado do Ceará o que enviou o maior número delas. Eram tantos, que os demais nordestinos no Acre passaram a ser chamados genericamente de cearenses.
Essa movimentação populacional ocorreu a partir do final da segunda metade do século XIX, como fruto de decisões imperialistas tomadas por grandes nações europeias, mais especificamente, no centro da Revolução Industrial - Inglaterra e França, durante o período que ficou caracterizado como o primeiro ciclo da borracha.
Em um segundo momento, o agente imperialista foi os Estados Unidos, objetivando atender à demanda da borracha para fins bélicos, na Segunda Guerra Mundial. Este período foi chamado o segundo ciclo.
A exploração da seringueira na região norte, associada à seca do sertão e aos retirantes, motivou inúmeras pesquisas dentro e fora do país, fez surgir canções e poesias que vão até o “meio da canela”, como diziam os seringueiros quando se referiam à abundância das águas da região. Em A Seca do Ceará, diz o cordelista Leandro Gomes de Barros:

Seca a terra, as folhas caem,
Morre o gado, sai o povo,
Vento varre a campina,
Rebenta a seca de novo;
Cinco, seis mil emigrantes
Flagelados retirantes
Vagam mendigando o pão.


Arthur Cezar Ferreira Reis e Samuel Benchimol, importantes estudiosos que escreveram sobre a Amazônia, afirmam que a primeira leva de nordestinos que migrou para a região data de 1878 (motivada também pela Grande Seca de 1877). No primeiro ciclo da produção de borracha na Amazônia, situado no período de 1880 até 1914, a borracha foi um dos principais produtos brasileiros a ser exportado, perdendo apenas para o café.
A borracha natural atingiu uma produção de quarenta e duas mil toneladas por ano, fazendo o Brasil dominar o mercado mundial desse produto, decorrente do aperfeiçoamento do processo de vulcanização, bastante valorizado, fundamental para a ampliação da indústria automobilística, além de seu uso em outros produtos industriais. Mas esse quadro durou até 1910, quando os seringais ingleses na Ásia, dotados de métodos mais eficientes, começaram a produzir, e o Brasil sofreu com a forte concorrência e estagnação da economia, no período de 1914 a 1940.
O segundo ciclo da produção de borracha na Amazônia deu-se em consequência da ocupação dos seringais asiáticos pelos japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial, o que obrigou os Estados Unidos a financiarem a produção de borracha na Amazônia durante o período de 1941 a 1945. Mais uma vez os nordestinos foram convocados para a extração do látex. Naquele momento, assumiram a missão de servir à pátria, ganhando o título de Soldados da Borracha, quando optavam em não ir para a Guerra. O cearense Fernando de Castela homenageia seus companheiros com o poema Soldados sem Quartel:

Sô ciarense dos bom,
Desses qui impina e num racha
e, além de sê ciarense,
sô sordado da burracha.
Tava u’a seca feroz
lá pressas banda de nois,
la pras banda do Nordeste,
antonce os cabra da peste,
tudo de ôi arregalado,
pidia a Deus qui chuvesse,
mode aguá os roçado;

Os fatos econômicos mundiais aliaram-se às grandes secas que assolaram o nordeste, obrigando o sertanejo a abandonar suas terras, já que as perdas não se resumiam às plantações e criações. Morriam também as pessoas, de fome e doenças oriundas da desnutrição. A poesia foi uma das maneiras de traduzir esse sentimento que tomou conta dos cearenses, quando enfrentaram a vida na Amazônia, repleta de dificuldades em um ambiente tão adverso daquele que estavam habituados, onde contraíam doenças, sofriam com o isolamento e com a relação de trabalho imposta pelos patrões, donos dos seringais. Mas, mesmo em meio a essa realidade, a região ofereceu uma condição de trabalho e sobrevivência que a seca tinha impedido de acontecer no Ceará.
Os versos abaixo retratam a realidade do sertanejo, que, vítima da seca, buscava em Deus as soluções que os dirigentes do país se esquivavam de resolver.

O Governo Federal
Querendo remia o Norte
Porém cresceu o imposto
Foi mesmo que dar-lhes a morte
Um mete o facão e roda-o.
     (Leandro Gomes de Barros)

Só Deus mesmo nos acode
pois o Nordeste não pode
salvar o seu pessoal
     (José Bernardo da Silva, em Os Homens do Nordeste)

O desenrolar da história de cearenses que vieram para o Acre, inversamente, também leva acreanos para o nordeste, e, no encontro com esses dois mundos, novos versos vão surgindo por mãos de outros poetas, que não se cansam de retratar amores e saudades das pessoas e dos lugares vividos; vão espalhando seus cantos pelo mundo para provocar autoridades, mas sem deixar de clamar a Deus pela chuva, que molha a terra e dá a vida. Às vezes, também invocam demônios para espantar seus inimigos, políticos desonestos e latifundiários, que não abandonam o nordeste.

EU, NORTISTA

Com essa sede
de nordestino
eu subi o rio
e vim parar aqui,
trazida nos sonhos
dos meus ancestrais,
brotada na terra verde
no seio da Amazônia
               (Francis Mary)

Do Ceará vieram os sabores dos hábitos alimentares, a maneira de processar a farinha e temperar a comida. Veio também a escolha de plantas que servem de remédios para as doenças, as preces e a devoção pelos santos. Para o Acre veio, do Ceará, a maneira de cantar para ninar as crianças, as histórias de assombração e o forró para animar as festar e atenuar a solidão de sertanejos e seringueiros.  Viajou do Ceará para o Acre o olhar para as estações do ano, onde não há referência à primavera, o inverno está associado ao período chuvoso e o verão à estiagem. A esse respeito Câmara Cascudo, explicita em seu poema Vida Nordestina:

Quando o inverno é constante
o sertão é terra santa:
quem vive da agricultura
tem muito tudo que planta.
Há fartura e boa safra,
todo pobre pinta a manta...

Nisso entra o mês de agosto
E aí começa o verão.
Entra-se em quebra de milho,
Bate-se e guarda o feijão
Desmanche-se, então, a cana,
Descaroça-se o algodão.

Fazer essa viagem de volta, no sentido Acre–Ceará, tem também o propósito de levar a poesia cearense, acreana e de tantos outros lugares, ao longo desse trajeto, fortalecendo o laço que une esses dois Estados da Federação, e esses tantos estados de espírito aqui referidos, reforçando assim a memória enfraquecida pela distância geográfica, e oportunizando a novos poetas o exercício de soltarem seus versos e aflorarem lembranças da história de vida dos que fizeram parte desse universo de sofrimento, por terem abandonado suas terras e alimentarem a esperança por se estabelecerem em novos lugares.

Eliana Castela

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