Por que atravessar o país do norte
ao nordeste, ou melhor, de Cruzeiro do Sul, no Acre, até Fortaleza, no Ceará?
Para quem não sabe, esta é a maior linha de ônibus contínua de todo o país, com
extensão aproximada de 7.800 km, talvez a maior da América do Sul. As razões
para tal não se situam apenas no campo dos serviços de transporte público; provavelmente
o grande peso na manutenção desse importante trajeto rodoviário tem razões
históricas, relacionadas aos acontecimentos econômicos mundiais que repercutiram
na política nacional, nas migrações internas, assim como no processo
geopolítico, pois em 1903, findo o conflito entre Brasil e Bolívia, esta perde
uma importante porção territorial, que veio a constituir-se no atual Estado do
Acre, local onde havia abundância de árvores produtoras do látex.
As migrações populacionais que
levaram os nordestinos brasileiros a se espalharem por todo o país têm uma
importante página escrita na formação territorial, social e econômica da
Amazônia, no
período de intensa produção de látex na região. Vieram cerca de cem mil
pessoas, tendo sido o Estado do Ceará o que enviou o maior número delas. Eram tantos, que os
demais nordestinos no Acre passaram a ser chamados genericamente de cearenses.
Essa movimentação populacional ocorreu a
partir do final da segunda metade do século XIX, como fruto de decisões imperialistas
tomadas por grandes nações europeias, mais especificamente, no centro da Revolução Industrial - Inglaterra e França,
durante o período que ficou caracterizado como o primeiro ciclo da borracha.
Em um segundo momento, o agente
imperialista foi os Estados Unidos, objetivando atender à demanda da borracha
para fins bélicos, na Segunda Guerra Mundial. Este período foi chamado o
segundo ciclo.
A exploração da seringueira na
região norte, associada à seca do sertão e aos retirantes, motivou inúmeras
pesquisas dentro e fora do país, fez surgir canções e poesias que vão até o
“meio da canela”, como diziam os seringueiros quando se referiam à abundância
das águas da região. Em A Seca do Ceará, diz o cordelista Leandro Gomes de Barros:
Seca a terra, as folhas caem,
Morre o gado, sai o povo,
Vento varre a campina,
Rebenta a seca de novo;
Cinco, seis mil emigrantes
Flagelados retirantes
Vagam mendigando o pão.
Arthur Cezar Ferreira Reis e
Samuel Benchimol, importantes estudiosos que escreveram sobre a Amazônia, afirmam
que a primeira leva de nordestinos que migrou para a região data de 1878
(motivada também pela Grande Seca de 1877). No primeiro ciclo da produção de
borracha na Amazônia, situado no período de
1880 até 1914, a borracha foi um dos principais produtos brasileiros a ser exportado,
perdendo apenas para o café.
A borracha natural atingiu uma produção de quarenta
e duas mil toneladas por ano, fazendo o Brasil dominar o mercado mundial desse
produto, decorrente do aperfeiçoamento do processo
de vulcanização, bastante valorizado, fundamental para a ampliação da indústria
automobilística, além de seu uso em outros produtos industriais. Mas esse quadro
durou até 1910, quando os seringais ingleses na Ásia, dotados de métodos mais
eficientes, começaram a produzir, e o Brasil sofreu com a forte concorrência e
estagnação da economia, no período de 1914 a 1940.
O
segundo ciclo da produção de borracha na Amazônia deu-se em consequência da ocupação dos seringais asiáticos
pelos japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial, o que obrigou os Estados
Unidos a financiarem a produção de borracha na Amazônia durante o período de
1941 a 1945. Mais uma vez os nordestinos foram convocados para a extração do
látex. Naquele momento, assumiram a missão de servir à pátria, ganhando o
título de Soldados da Borracha,
quando optavam em não ir para a Guerra. O cearense Fernando de Castela homenageia
seus companheiros com o poema Soldados
sem Quartel:
Sô ciarense
dos bom,
Desses
qui impina e num racha
e,
além de sê ciarense,
sô
sordado da burracha.
Tava
u’a seca feroz
lá
pressas banda de nois,
la
pras banda do Nordeste,
antonce
os cabra da peste,
tudo
de ôi arregalado,
pidia
a Deus qui chuvesse,
mode
aguá os roçado;
Os fatos econômicos mundiais aliaram-se
às grandes secas que assolaram o nordeste, obrigando o sertanejo a abandonar
suas terras, já que as perdas não se resumiam às plantações e criações. Morriam
também as pessoas, de fome e doenças oriundas da desnutrição. A poesia foi uma das maneiras de
traduzir esse sentimento que tomou conta dos cearenses, quando enfrentaram a vida
na Amazônia, repleta de dificuldades em um ambiente tão adverso daquele que
estavam habituados, onde contraíam doenças, sofriam com o isolamento e com a relação
de trabalho imposta pelos patrões, donos dos seringais. Mas, mesmo em meio a
essa realidade, a região ofereceu uma condição de trabalho e sobrevivência que
a seca tinha impedido de acontecer no Ceará.
Os versos abaixo retratam a realidade do
sertanejo, que, vítima da seca, buscava em Deus as soluções que os dirigentes
do país se esquivavam de resolver.
O
Governo Federal
Querendo
remia o Norte
Porém
cresceu o imposto
Foi
mesmo que dar-lhes a morte
Um
mete o facão e roda-o.
(Leandro Gomes de Barros)
Só
Deus mesmo nos acode
pois
o Nordeste não pode
salvar
o seu pessoal
(José Bernardo da Silva, em Os Homens do Nordeste)
O desenrolar da história de cearenses
que vieram para o Acre, inversamente, também leva acreanos para o nordeste, e,
no encontro com esses dois mundos, novos versos vão surgindo por mãos de outros
poetas, que não se cansam de retratar amores e saudades das pessoas e dos
lugares vividos; vão espalhando seus cantos pelo mundo para provocar
autoridades, mas sem deixar de clamar a Deus pela chuva, que molha a terra e dá
a vida. Às vezes, também invocam demônios para espantar seus inimigos,
políticos desonestos e latifundiários, que não abandonam o nordeste.
EU, NORTISTA
Com
essa sede
de
nordestino
eu
subi o rio
e
vim parar aqui,
trazida
nos sonhos
dos
meus ancestrais,
brotada
na terra verde
no
seio da Amazônia
(Francis Mary)
(Francis Mary)
Do Ceará vieram os sabores dos
hábitos alimentares, a maneira de processar a farinha e temperar a comida. Veio
também a escolha de plantas que servem de remédios para as doenças, as preces e
a devoção pelos santos. Para o Acre veio, do Ceará, a maneira de cantar para
ninar as crianças, as histórias de assombração e o forró para animar as festar
e atenuar a solidão de sertanejos e seringueiros. Viajou do Ceará para o Acre o olhar para as
estações do ano, onde não há referência à primavera, o inverno está associado
ao período chuvoso e o verão à estiagem. A esse respeito Câmara Cascudo,
explicita em seu poema Vida Nordestina:
Quando
o inverno é constante
o
sertão é terra santa:
quem
vive da agricultura
tem
muito tudo que planta.
Há
fartura e boa safra,
todo
pobre pinta a manta...
Nisso
entra o mês de agosto
E
aí começa o verão.
Entra-se
em quebra de milho,
Bate-se
e guarda o feijão
Desmanche-se,
então, a cana,
Descaroça-se
o algodão.
Fazer essa viagem de volta, no
sentido Acre–Ceará, tem também o propósito de levar a poesia cearense, acreana
e de tantos outros lugares, ao longo desse trajeto, fortalecendo o laço que une
esses dois Estados da Federação, e esses tantos estados de espírito aqui
referidos, reforçando assim a memória enfraquecida pela distância geográfica, e
oportunizando a novos poetas o exercício de soltarem seus versos e aflorarem
lembranças da história de vida dos que fizeram parte desse universo de
sofrimento, por terem abandonado suas terras e alimentarem a esperança por se
estabelecerem em novos lugares.
Eliana Castela
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